sábado, 7 de agosto de 2010

Emenda Constitucional nº 66/2010. Extinção da separação judicial - Sílvio de Salvo Venosa

Ao lado do divórcio, o ordenamento colocava a separação pessoal, que nosso Direito tradicional denominou desquite no passado, solução capenga que atormentou por tantas décadas nossa sociedade. Nessa modalidade, denominada mais recentemente de separação judicial, admitia-se a mera separação de corpos, fazendo cessar o dever de coabitação sem dissolução do vínculo matrimonial, regulando-se seus efeitos, tais como dever de alimentos entre os cônjuges, regime de vocação hereditária etc. Originalmente, a separação judicial, que substituiu o desquite, surgiu como uma fase prévia e necessária antecedente ao divórcio, situação relevada em situações nas quais se permitia o chamado divórcio direto.

A Emenda Constitucional nº 66, de 13 de julho de 2010, atendendo a ingentes reclamos sociais, deu nova redação ao § 6º ao art. 226 da Constituição Federal, dispondo:" O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio", suprimindo-se assim separação prévia do casal, que persistia em muitas eventualidades. O texto anterior desse parágrafo dispunha: "O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada a separação de fato por mais de dois anos". A singeleza do novo texto constitucional não permite outra conclusão que não a da exclusão da separação judicial do ordenamento bem como, como consequência, de qualquer referência à culpa no desfazimento do casamento. Essa foi a precípua finalidade da Emenda.

Em qualquer situação, a extinta separação ou divórcio deve traduzir essencialmente um remédio ou solução para o casal e a família, e não propriamente uma sanção para o conflito conjugal, buscando evitar maiores danos não só quanto à pessoa dos cônjuges, mas principalmente no interesse dos filhos menores. Transita-se, pois, na história, na doutrina e nas legislações, entre os conceitos de divórcio-remédio e divórcio-sanção, aos quais nossa lei não fugia à regra, algo que muda com a citada emenda constitucional.

O divórcio como sanção funda-se na ideia de que o cônjuge (ou ambos) tenha praticado um ou mais atos tidos como ilícitos para o instituto do casamento, assim definidos em lei. Não é solução que mais agrada nem ao legislador, que deve restringir essas hipóteses, nem à maioria dos casais em conflito. Essa é, portanto, a razão pela qual a lei deve incentivar o divórcio por mútuo consentimento, que traduz o divórcio-remédio. Não exatamente porque conceituemos o casamento como um contrato, porém mais propriamente porque constitui um deslinde ao conflito conjugal que não encontra solução adequada e socialmente segura no divórcio-sanção, no qual os cônjuges devem necessariamente descrever as causas para o desenlace.

Nas legislações mais modernas percebe-se, destarte, a prevalência do divórcio-remédio, isto é, o desfazimento do casamento sem que se declinem ou se investiguem as causas do rompimento conjugal. O divórcio deve ser visto tendo em mira não o passado, mas o futuro dos cônjuges separados, para os quais subsistem deveres de assistência moral e econômica, mormente em relação aos filhos menores. A exposição das causas da separação em um divórcio-sanção sempre será uma fragilidade da questão que certamente colocará por terra esse aspecto.

Por outro lado, apesar do processo universal de liberalização do divórcio, em várias legislações subsistem as chamadas cláusulas de dureza, também denominadas cláusulas de rigor ou salvaguardas. Essas cláusulas impõem limitação à possibilidade de divórcio-remédio, ou estabelecem uma sanção a um ou a ambos os cônjuges que o requerem. São disposições que, em síntese, buscam dificultar o divórcio. Com a nova redação constitucional, o divórcio em nosso ordenamento deve sempre ser visto como remédio.

Passados tantos anos da introdução do divórcio entre nós, já não mais se sustentava essa dicotomia, separação e divórcio, suprimida pela mencionada emenda à Constituição. Havia mesmo que se suprimir definitivamente a separação, permitindo-se aos cônjuges que recorram sistemática e diretamente ao divórcio.

O mútuo consentimento para o divórcio dá margem para resolução daquelas situações nas quais os cônjuges têm plena consciência do caminho a seguir e das consequências do ato para eles e para os filhos. Com isso, afasta-se da separação ou divórcio, por si só traumática, como em todo rompimento, a noção de culpa ou ilicitude, apartando-se da ideia de que a separação do casal pressupõe sempre a quebra ou o fracasso irremediável de um matrimônio. De outro lado, induzindo a lei ao divórcio-remédio, não se incentiva os cônjuges a procurar causas jurídicas, nem sempre muito claras ou verdadeiras na realidade dos fatos, para justificar o rompimento, tais como o adultério, injúria e abandono do lar.

Essas causas, porém, continuavam presentes no atual Código, sofrendo acerbas críticas da doutrina (art. 1.573). Esse artigo não deve mais ser levado em consideração tendo em conta a possibilidade de divórcio direto e imediato em qualquer terminação do casamento. Deve ser afastado, pois, o conceito de castigo ou punição para o cônjuge tido como culpado. A noção de culpa e de um culpado não se harmoniza com o desfazimento de uma sociedade conjugal. Nesse aspecto, o atual Código representou um grande retrocesso.

É necessário que também tenhamos em mente que, ao analisar um ato culpável, há amplo subjetivismo do órgão julgador, o que pode levar a uma incerteza quanto às causas da separação ou divórcio. Deve ser evitada essa intromissão judicial na vida privada dos cônjuges, numa época em que se procura preservar a intimidade a qualquer custo. Por essa razão avulta a importância de uma conciliação obrigatória e razoável em todas questões de família. A ação judicial nesse campo sempre será trágica.

A singeleza da redação da citada Emenda Constitucional, de aplicação imediata, vai, sem dúvida, trazer algumas dúvidas em casos pontuais, como por exemplo com relação a alimentos devidos por divorciados, mas que a jurisprudência deverá dirimir interpretando a mens legis constitucional, enquanto não tivermos uma norma regulamentadora. Os casais sob o estado de separação judicial no regime anterior necessitarão convertê-lo em divórcio, salvo se lei regulamentadora transformá-los em divorciados.

De qualquer forma, simplificam-se também as escrituras públicas de divórcio, pois este pode ser obtido a qualquer tempo, sem qualquer restrição temporal.

Esperamos traçar os principais balizamentos trazidos por essa reforma constitucional nas próximas edições de nossas obras.


*Sílvio de Salvo Venosa

Formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1969), cursou o Curso de Direito do Consumidor na Comunidade Européia, Universidade de Louvain-la-Neuve, Bélgica (1993). Foi juiz no Estado de São Paulo por 25 anos, passando a integrar o corpo de profissionais do Demarest & Almeida Advogados na capital do Estado, onde foi sócio e atualmente é consultor. É consultor externo do escritório Romano & Associados, de Salvador - BA. Foi professor na UNAERP – Universidade de Ribeirão Preto, na FMU – Faculdades Metropolitanas Unidas, na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, Fundação Karnig Bazarian - Faculdades Integradas de Itapetininga e na UNIP - Universidade Paulista. Pós-graduado pela USP e pela PUC=SP. É também professor convidado e palestrante em Instituições docentes e profissionais de todo o país e membro da Academia Paulista de Magistrados (APAMAGIS), Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Tem elaborado pareceres para inúmeras empresas nacionais e internacionais, bem como faz consultoria para escritórios de advocacia

Autor da "Coleção Direito Civil" (10ª edição/2008) pela Editora Atlas, em oito volumes: Parte Geral, Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos, Contratos em Espécie, Responsabilidade Civil, Direitos Reais, Direito de Família, Direito das Sucessões e Direito Empresarial; "Lei do Inquilinato Comentada" (9ª edição/2009), pela Editora Atlas; “Introdução ao Estudo do Direito: Primeiras Linhas, Introdução ao Estudo do Direito” (2º edição/2006) pela Editora Atlas; autor do Comentários ao Código Civil Brasileiro, v. XVI (2003), pela Editora Forense, Organizador do Novo Código Civil (4º edição/2004) da Editora Atlas, autor do “Código Civil Comentado, v. XII (2003) pela Editora Atlas, autor do “Código Civil Anotado” (2004) pela Editora Atlas e do "Código Comercial e Legislação Empresarial" (2004), por Malheiros Editores, bem como autor de inúmeros artigos publicados em jornais e revistas especializadas. Em 2010 lançou “Código Civil Interpretado”, também pela Editora Atlas.

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